Análise da Proposta de Redação da 2ª Edição do Enem 2016

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2016, teve uma edição a mais: além da edição anual e da edição destinada aos jovens e adultos que estão privados de liberdade – Enem PPL (que ainda será realizada) – houve uma segunda edição no último final de semana, dias 03 e 04 de dezembro, para os candidatos que fariam a edição normal em novembro nas escolas ocupadas por estudantes contrários à reforma do Ensino Médio.

A segunda edição do Enem 2016 foi realizada obedecendo a mesma estrutura das demais edições do exame e, sendo assim, no segundo dia de provas, ou seja, no domingo, houve a aplicação da prova de redação, cujo tema foi “Caminhos para combater o racismo no Brasil“.

Assim que este tema foi divulgado nas redes sociais pelo Ministério da Educação (MEC), muitos candidatos que prestaram a primeira edição do Enem 2016 reclamaram de injustiça por parte do exame, pois consideraram este tema mais fácil do que “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil“. Porém, é importante salientar que é no mínimo prematuro fazer tal julgamento sem conhecer a proposta de redação no seu todo, isto é, a coletânea de textos motivadores e, consequentemente, o recorte temático, os quais iremos analisar neste texto.

Ao compararmos os dois temas, a estrutura linguística é idêntica, trocando, apenas, o foco (racismo x intolerância religiosa); ambos também focam minorias, já que a população negra, apesar de ser maioria quantitativa no Brasil, é uma minoria social, assim como os adeptos de religiões de matriz africana e os não-cristãos, algo que relacionamos, inclusive, no texto que analisou o tema da redação da primeira edição do Enem 2016 (veja).

Neste sentido, os candidatos das duas edições que não conhecem os temas de redação a fundo, os negaram de alguma forma ou os relativizaram não se saíram bem. Por isso não é tão importante tentar adivinhar qual será o tema de uma prova de produção escrita, pois tem de estar preparado para escrever sobre qualquer tema.

Partindo, neste momento, para a análise do tema de redação “Caminhos para combater o racismo no Brasil”, a coletânea de textos motivadores é formada por quatro textos, sendo um deles um texto informativo com linguagem verbal e não-verbal.

O primeiro texto fonte é do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, uma das vozes mais ressoantes no que diz respeito à formação social da população brasileira. O trecho de seu texto usado na proposta de redação conecta as consequências da assinatura da abolição da escravatura no Brasil com à marginalização do negro na sociedade nos anos 1990; apesar do tempo de publicação, podemos afirmar que, em 2016, a realidade do negro, no Brasil, pouco mudou, infelizmente.

Segundo Darcy Ribeiro, depois da Lei Áurea, o negro continuou sendo considerado um subproletariado, ou seja, um trabalhador submetido aos demais, inferiorizado e ligado ao seu antigo papel, o de escravo, o de mercadoria, o de animal, o que tem consequências até hoje, que podem ser resumidas na marginalização dos homens negros e mulheres negras brasileiros, entre os quais as taxas de analfabetismo são maiores, as taxas de mortalidade e criminalidade, já que a população carcerária no Brasil, em sua maioria, é negra, além dos índices de jovens negros que morrem por meios violentos, como assassinatos.

Além disso, ao ler tal excerto, o candidato deveria se lembrar de aspectos que Darcy Ribeiro não menciona neste texto, mas que é de conhecimento geral: negros ganham menos do que brancos, mulheres negras sofrem mais machismo do que as brancas, os negros têm mais dificuldade do que os brancos em relação ao acesso ao ensino universitário, a violência da polícia militar cai mais sobre o jovem negro, dentre outras questões.

Para o autor, trata-se de um fracasso da sociedade brasileira que não conseguiu atingir a tal sonhada democracia racial na qual o negro seria um cidadão indiferenciado dos demais, isto é, com as mesmas condições sociais.

O segundo texto fonte, por sua vez, trata, por meio da legislação, do crime do racismo, da discriminação ou preconceito por raça, etnia, cor, religião ou origem. Cientificamente falando, o termo “raça” é equivocado, pois só existe uma raça de pessoas: a raça humana. O que existem são diferentes tons e cores de pele, devido à miscigenação e à concentração de melanina, e as etnias, que nada mais são do que o conjunto de questões de cor, de pele e de cultura. No caso da etnia negra, além da cor negra da pele, refere-se à cultura negra que engloba música, religião, culinária, vestimentas, tradições, costumes, línguas e dialetos etc.

Terceiro Texto Motivador da Redação do Enem 2016 Segunda aplicação.
Texto III da Redação do Enem 2016 (2ª Edição).

Portanto, discriminar alguém por conta da sua cor de pele ou etnia é crime no Brasil e o terceiro texto motivador diferencia injúria racial de racismo. De acordo com a lei brasileira, a injúria racial acontece quando a honra de alguém é ofendida com xingamentos relacionados à sua cor, etnia, religião (casos de intolerância religiosa) e origem (xenofobia); já o racismo ocorre quando há uma conduta discriminatória dirigida a determinados grupos, como por exemplo, separar negros e brancos.

Ambos os crimes, apesar de serem tecnicamente diferentes, são oriundos dos preconceitos em relação aos negros, que têm origem na época da escravidão no Brasil. O racismo, a injúria racial e a marginalização do povo negro são legados da escravidão, tema, inclusive, da proposta de redação do vestibular da Unesp 2016.

Finalmente, o quarto texto motivador, traz para o candidato um exemplo de proposta de intervenção social: as ações afirmativas. Tratam-se de políticas públicas que têm como objetivo corrigir injustiças e desigualdades raciais e sociais, acumuladas ao longo dos anos. Como exemplo, podemos citar as cotas raciais em vestibulares, tema alvo de muita polêmica, inclusive.

Nesse sentido, o candidato que criticou tais ações afirmativas, como as cotas, foi contra ao recorte temático da proposta de redação. Acreditamos que ponderá-las, trabalhá-las mais a fundo é uma estratégia interessante, mas quem afirmou que eles não resolvem o problema ou que são discriminatórias, discordou do recorte temático da prova de produção escrita.

Portanto, neste viés, o candidato que relativizou o tema, dizendo que há um exagero ao afirmar que existe racismo no Brasil, no mínimo, tangenciou o tema, assim como os que desenvolveram o tema fora do âmbito brasileiro. Já aqueles que afirmaram que os negros se fazem de coitados ou de vítimas, que “mamam nas tetas do governo” ou qualquer outro absurdo como este, fugiu completamente do tema, tendo sua dissertação-argumentativa anulada.

Por outro lado, o candidato que acessou seus conhecimentos de História do Brasil, trabalhando com o que houve com a maioria dos ex-escravos brasileiros (formação dos cortiços e das favelas nas periferias das cidades, sem acesso à água encanada e eletricidade, desemprego etc.) e relacionou tais fatos com a marginalização atual do negro, ligando com questões econômicas e sociais (menores salários, machismo, violência dentre outras) e que, na conclusão, propôs caminhos como mais ações afirmativas que visam erradicar a desigualdade étnica e social no Brasil, respeitando os Direitos Humanos, sem incitar a violência, alcançou o objetivo desta proposta de redação.

Finalizando, este tema é de suma importância, pois, infelizmente, o Brasil é um país racista que discrimina seu semelhante devido à sua triste história e à sua concentração de melanina. Os brancos podem até imaginar, mas nunca saberão, na pele, de verdade, o que é ser alvo de racismo; é muito falar que tudo hoje é racismo, alegando que há um exagero. E se fosse você? Empatia e respeito não custam nada. Parabéns ao Enem por este tema!

 


*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada em Letras/Português e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas e do Curso Online do infoEnem. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).

 
**Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas!

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2 comments
  1. Assim fazem parecer que só existe racismo contra negros e não existe contra indígenas, asiáticos, albinos…

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