Muitos alunos me perguntam como eu sobrevivo às atrocidades cometidas na internet, principalmente nas redes sociais, contra o idioma. Não é que não me incomodem, afinal, admiro tanto a Língua Portuguesa que escolhi trabalhar com ela, mas não passo o tempo todo fiscalizando ou policiando o uso que fazem do idioma. O que faço então? Observo atentamente os desvios da norma culta e acabo empregando como objeto de estudo e de exemplos para as aulas. E concordo com o prof. Leandro Karnal,
Não adianta solidificar uma armadura que defenda o português. O ataque não é externo, é opção dos cidadãos de dentro.
Confesso, entretanto, que algumas situações me ‘abalam’: o mau emprego da cedilha é uma delas. Para falar a respeito do emprego, vamos antes entender a função e passear pela história desse sinalzinho. i
A cedilha é um dos chamados sinais diacríticos, sinais empregados para alterar a pronúncia de algumas letras, dando-lhes novo valor fonético. Outros sinais diacríticos são o til (pois é, til não é acento!) e o trema que, abolido pelo Acordo Ortográfico, manteve-se apenas em palavras de origem estrangeira.
A cedilha teria derivado de uma forma do “z” na escrita visigótica (retome o estudo de História, para relembrar quem foram os visigodos), a qual teria passado a manuscritos de letra francesa escritos na Espanha do séc. XII.ii Esse pequeno ‘z’ (parecido com o ‘zeta’ grego), “zedilla”iii(na forma diminutiva do nome da letra) era desenhado sob a letra ‘C’, para indicar que ela deveria ser pronunciada de modo sibilante, como o ‘s’ inicial ou o dígrafo ‘ss’ . Veja o desenho:
Observemos agora um trecho da Crônica de D. Fernando de Fernão Lopes, historiador português que você deve ter estudado em Literatura Portuguesa, no período do Humanismo (1434-1527). O excerto aparece em português arcaico:
Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom Fernamdo
Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razões sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia em si, por se comtemtar de tal casamento. (…) E leixadas as fallas dalguns simprezes, que em favor delle razoavom, dizendo que nom era maravilha o que elRei fezera, e que ja a outros acomteçera semelhável erro, avemdo gramde amor a alguumas molheres; dos ditos dos emtemdidos fundados em siso, alguuma cousa digamos em breve: os quaaes fallamdo em esto o que pareçia, diziam que tal bem queremça era muito demgeitar, moormente nos Reis e senhores, que mais que nenhuuns dos outros desfaziam em si per liamça de taaes amores. Ca pois que os antiigos derom por doutrina, que ho Rei na molher que ouvesse de tomar, principalmente devia desguar dar nobreza de geeraçom, mais que outra alguuma cousa, que aquel que o comtrario desto fazia, nom lhe viinha de boom siso, mas de samdiçe, salvo se husamça dos homeens em tal feito lhe emprestasse nome de sesudo: (…)
Fonte: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/p00001.htm
Até o século 15 ou 16, era comum o uso de “ç” diante de qualquer uma das cinco vogais e também no início de palavras, para representar o som do ‘s’ inicial ou ‘ss’, como já mencionei. Isso porque a letra ‘c’ simples, sem a ‘marquinha’ costumava ser pronunciada como ‘k’. Com o passar do tempo, a ortografia foi sendo normatizada, foram sendo estabelecidos padrões e regras para o emprego.
Atualmente, o Acordo Ortográfico determina que o cê cedilhado seja empregado apenas diante das vogais A, O e U.(confira a Base III do acordo: o 3º item trata da distinção gráfica entre as letras s, ss, c, ç e x, que representam sibilantes surdas)iv
O cê cedilha não pode ser empregado, portanto, em ‘você’, ‘conhecer’, ‘conciso’ etc. nem na sílaba inicial das palavras. Além disso, convém lembrar que não é uma letra diferenciada, é a junção da letra “c” com o sinal diacrítico cedilha, por isso não aparece separadamente no alfabeto e nos dicionários aparece na sequência alfabética.
Até a próxima semana!
i In http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-vida-da-lingua,70001665676 Acesso em 16-02-2017
ii In www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/caligrama/article/download/369/322
iii Para quem não tem noções de Espanhol: só existe a pronúncia sibilante tanto para o ‘s’ como para o ‘z’. Assim ‘azúcar’ é pronunciado como o nosso ‘açúcar’.
iV Ii: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/508145/000997415.pdf?sequence=1
Margarida Moraes é formada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Com mais de 20 anos de experiência, corretora do nosso Curso de Redação Online (CLIQUE AQUI para saber mais) e responsável pela resolução das apostila de Linguagens e Códigos do infoEnem, a professora é colunista de gramática do nosso portal. Seus textos são publicados todos os domingos. Não perca!