Como a acentuação pode mudar o significado das palavras

Horário de versão e a concordância

A língua portuguesa é predominantemente paroxítona, isto é, a maioria das palavras possui a penúltima sílaba mais forte. Podemos fazer um teste. Observe o nome dos objetos que estão à sua volta: mesa, cadeira, vaso, toalha, teto, parede, armário, estante, piso, janela, porta, computador… Faça também o teste num pequeno texto: o mesmo se verificará.

Isso se dá porque os vocábulos proparoxítonos, no processo de evolução do Latim ao Português, foram transformados quase todos em paroxítonos, como nos exemplos abaixo:

  • PEDUCULU > PIOLHO
  • POLYPU > POLVO
  • LITTERA > LETRA
  • LEPORE > LEBRE
  • VIRIDE > VERDE

Essa tendência continua, por exemplo, na variante linguística não culta e, notoriamente, no chamado ‘falar caipira’, em que xícara vira xicra, árvore vira arve e córrego vira corgo (e se forem pequenos, viram xicrinha, arvinha e corguinho!).

E, por causa dessa tendência de “facilitação’ da pronúncia e do repertório de palavras que vamos internalizando naturalmente no decorrer da vida, quando nos deparamos com uma palavra desconhecida temos a tendência de pronunciá-la como se fosse uma paroxítona.

Esse processo e tendência são a justificativa para a regra de acentuação mais fácil de ser memorizada: ‘Todas as proparoxítonas são acentuadas’. Realmente não é difícil se lembrar dessa frase, mas ela precisa ser justificada historicamente para fazer sentido, compreendida e aplicada, uma vez que, se nos esquecermos do acento, podemos incorrer em erro, de acordo com a norma culta, ou podemos obter outra palavra, com sentido diferente!

Observe:

  • dico (substantivo) / medico (1ª pess. sing. do verbo ‘medicar’ no Presente do Indicativo)
  • brica (substantivo) / fabrica (1ª pess. sing. do verbo ‘fabricar’ no Presente do Indicativo)
  • sico (substantivo) / musico (1ª pess. sing. do verbo ‘musicar’ no Presente do Indicativo)
  • Último (adjetivo) / ultimo (1ª pess. sing. do verbo ‘ultimar’ no Presente do Indicativo)

 

Mas, se a tendência é facilitar e “encurtar” as proparoxítonas, por que ainda existem estas últimas?

Bem, é que a maior parte das proparoxítonas que compõem a língua portuguesa é resultado de empréstimo literário do Latim, que ocorreu maciçamente, por meio da Igreja ou a partir das produções do Renascimento, ou seja, por influência erudita: prédica, cúpula, cálice, alvíssaras, pólipo, idólatra, ípsilon, tômbola, zíngaro.

Alguns compositores lançaram mão dessa sonoridade particular das proparoxítonas e produziram músicas bastante interessantes, como “Construção”, de Chico Buarque e a humorística “O drama de Angélica”, da dupla Alvarenga e Ranchinho, que segue abaixo, para descontrair a tensão da proximidade dos exames:

O Drama de Angélica

(…)Amei Angélica mulher anêmica
De cores pálidas e gestos tímidos (…)

Em noite frígida fomos ao Lírico
Ouvir o músico pianista célebre
Soprava o zéfiro, ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática

Fomos ao médico de muita clínica
Com muita prática e preço módico
Depois do inquérito descobre o clínico
O mal atávico, mal sifilítico (…)

Morreu Angélica de um modo lúgubre
Moléstia crônica levou-a ao túmulo (…)

Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano

E sobre o túmulo uma estatística
Coisa metódica como Os Lusíadas
E numa lápide de paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico

“Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!”
(https://www.letras.com/alvarenga-ranchinho/442708/ )

É isso! Até a próxima semana!


Margarida Moraes é formada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Com mais de 20 anos de experiência, corretora do nosso Curso de Redação Online (CLIQUE AQUI para saber mais) e responsável pela resolução das apostila de Linguagens e Códigos do infoEnem, a professora é colunista de gramática do nosso portal. Seus textos são publicados todos os domingos. Não perca!

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