Precisão e adequação vocabular: em busca da palavra exata

Horário de versão e a concordância

Drummond, lançando mão da metalinguagem, afirmou sobre essa busca que:

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.(…)

(In: http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?tag=poesia-traduzida Acesso em 23-12-2015)

A luta a que o poeta se refere é a escolha das palavras exatas, as que expressem as ideias e os sentimentos e os fixem no papel para o deleite ou reflexão do leitor. Vamos agora transferir do universo da poesia para o mundo real essa busca: nos textos objetivos a necessidade de precisão é ainda maior, principalmente se estivermos trabalhando com os textos dissertativo-argumentativos exigidos nos vestibulares.

Ao lado dos problemas gramaticais e ortográficos, a inadequação na escolha das palavras é dos problemas mais frequentemente apontados nas correções e que acaba interferindo em outro ponto relevante nesse tipo de texto: a clareza! Uma hipótese para explicar essa ocorrência pode ser a pequena frequência de consulta aos dicionários. Como assim?

Bem, existem, na mente de cada pessoa, dois conjuntos de palavras, os quais são pessoais mesmo, alimentados pelas experiências de vida e de leitura de cada um. Um é o vocabulário ativo, composto por palavras cujo significado conhecemos e por isso empregamos na construção de nossos enunciados. O outro é o vocabulário passivo, formado por palavras que ouvimos ou lemos e temos uma ideia às vezes não muito exata do significado. Como o adjetivo ‘sísmico’ – já o lemos nos textos de Geografia, mas quem não foi ao dicionário ou buscou o significado exato em outra fonte (vale inclusive perguntar ao professor) consegue se lembrar dela, associar à disciplina, mas não consegue empregá-la adequadamente num texto.

A partir dessa ‘não pesquisa’, algumas pessoas acabam empregando os termos por considerá-los ‘vistosos’, mas não o fazem no contexto adequado.

Outras vezes é a mídia a responsável, já que um jornalista incauto acaba usando inadequadamente um termo e, tal qual uma doença, esse uso inadequado se alastra com a velocidade dos meios modernos de comunicação. Vejam alguns exemplos de inadequação, colhidos no meio jornalístico e adaptados para cá:

  • A vítima teve um fígado afetado. – A inadequação consiste no emprego do ‘um’, como se alguém tivesse dois fígados… O ideal seria dizer que a vítima teve O fígado afetado.
  • Meu primo precisou operar o joelho. ­­– A menos que o tal primo seja cirurgião, o ideal seria dizer que o primo passou por uma cirurgia no joelho ou teve o joelho operado.
  • O Fulano lutava com a doença há algum tempo. – Lutar com significa que ele teve companhia nessa luta, a doença era sua companheira, e não acredito que fosse o caso… O ideal seria dizer que ele lutava CONTRA a doença.
  • Os jornais repercutiram a notícia. – Aqui vou reputar a responsabilidade aos jornalistas mesmo, pois só nesse contexto é que já encontrei tal inadequação. O problema é a transitividade do verbo – repercutir é intransitivo e o sujeito só pode ser a notícia!!! Reformulando teríamos duas opções: “A notícia repercutiu” (nos meios de comunicação ou em outro lugar) e “Os jornais divulgaram a notícia”.

Para evitar tais inadequações e para ampliar o já mencionado vocabulário ativo (o que vai consequentemente enriquecer seus textos) a recomendação é o uso abusivo do dicionário. Vou terminar o texto de hoje como comecei: com um poema, desta vez de Pablo Neruda, “Ode ao dicionário”, para ilustrar a relevância de tal ferramenta na vida do escritor:

E é bonito
recolher nas tuas filas
a palavra de estirpe,
a severa
e esquecida
sentença,
filha da Espanha,
endurecida
como grade de arado,
fixa no seu limite
de antiquada ferramenta,
preservada
com a sua formosura exata
e a sua dureza de medalha. (…)

(NERUDA, Pablo. Oda al diccionario/Ode ao dicionário. In: Antologia poética. 22. ed. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. p. 209-214.)

 


Margarida Moraes é formada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), onde também concluiu seu mestrado. Mais de 20 anos de experiência, corretora do nosso sistema de correção de redação e responsável pela resolução das apostila de Linguagens e Códigos do infoenem, a professora é colunista de gramática do nosso portal . Seus textos são publicados todos os domingos. Não perca!

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1 comment
  1. Excelente artigo!
    Lembrando que existem os dicionários online como o Dicio e o Priberam, então não há desculpa.

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