Há dois meses um vídeo antigo extraído do programa Altas Horas, da rede Globo, comandado pelo jornalista e apresentador Serginho Groisman, está circulando na internet, principalmente no Facebook e tornou-se tema de um imenso debate. O vídeo intitulado “Por que há poucos negros na universidade” já foi visto por mais de 500 mil pessoas e foi compartilhado mais de 9 mil vezes.
Trata-se de um trecho de uma edição do programa Altas Horas de 2006 no qual um rapaz da plateia é escolhido para conversar com Serginho Groisman sobre um tema sorteado que, nesta ocasião, foi as cotas para negros nas universidades. O rapaz expõe sua opinião para o apresentador, eles conversam e, logo em seguida, o rappper MV BILL pergunta se pode se pronunciar sobre o assunto e, neste momento, ele rebate o rapaz que conversou com Serginho Groisman.
Cotas para negros nas universidade brasileiras, desde a sua criação, é alvo de debates acalorados na mídia e entre os cidadãos brasileiros, pois parece haver uma polarização de opiniões a respeito. Os argumentos favoráveis e contrários se digladiam em discussões acerca de políticas afirmativas para negros, indígenas e pessoas de baixa renda.
Todo esse contexto é conhecido pela maioria dos brasileiros que se informa sobre os acontecimentos do país. O nosso objetivo, neste texto, é analisar as opiniões e os argumentos proferidos tanto pelo rapaz quanto por MV BILL no vídeo citado para refletirmos sobre as construções de narrativas que nos levam a ser quem somos, a pensar como pensamos e a sentir como nos sentimos. Como já dissemos em publicações anteriores, não basta opinar, tem de argumentar e ao lermos comentários nas redes sociais que se tornam verdadeiros debates, muitas pessoas afirmam que se trata da opinião delas como se isso não pudesse ser alvo de discussão ou de reflexão, que isso já basta para algo se sacramentado.
Em respeito à comunidade negra, estamos cientes de que nós, brancos que escrevemos essa coluna, nunca saberemos o que é ser vítima de racismo e de preconceito por conta da cor da pele e que, nesse tema, temos mais de nos calar e ouvir. Nosso intuito, neste espaço, é apenas analisar as opiniões e os argumentos expostos no referido vídeo a fim de refletirmos como construímos nossas narrativas e nossos processos argumentativos visando a construção da argumentação e de uma linha de raciocínio numa dissertação-argumentativa no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, por exemplo. Nesse sentido, estamos abertos para qualquer comentário, sugestão ou correção.
Iniciando a análise do vídeo, ao sortear o tema, o rapaz inicia sua fala afirmando que trata-se de um tema complicado e que é contrário às cotas para negros nas universidades e que estas não deveriam existir porque todos (brancos, negros, amarelos etc) têm direitos e que essas ações são uma falta de respeito com o ser humano.
A seguir, Serginho Groisman pergunta ao rapaz quantos negros existem na sala de aula dele, na universidade, e ele responde que existem dois negros na sua classe e o apresentador o questiona por que, na opinião dele, só existem duas pessoas negras na sua sala de aula. O moço responde que, na universidade inteira, há cursos nos quais é mais difícil encontrar alunos negros e Serginho pede a sua opinião novamente, perguntando o motivo pelo qual isso acontece e o rapaz afirma se tratar de uma boa pergunta e a plateia ri.
O apresentador pondera ao dizer, em seguida, que se trata de uma tema realmente delicado e tenta fazer com que o convidado trace uma linha de raciocínio ao perguntar se ele estudou em escolas públicas ou privadas e quantos alunos negros estudavam com ele. O rapaz responde que frequentou escolas públicas e que, na sua classe, tinham uns seis alunos negros entre meninos e meninas.
Serginho replica, afirmando que eram poucos alunos negros e o rapaz concorda e o apresentador retoma a história dos negros no Brasil, a questão da escravidão e que tudo isso culminou, entre tantas outras coisas, no difícil acesso do negro ao ensino e que não se trata de uma questão de força de vontade. E assim, o apresentador pede, explicitamente, que o rapaz desenvolva melhor a sua opinião e é nesse ponto que queríamos chegar.
O moço explicita a sua opinião contrária às cotas para negros nas universidades, dizendo que se trata de uma falta de respeito, mas não desenvolve seus argumentos ao não conseguir explicar o porquê pensa desta maneira. Serginho, ao fazê-lo relembrar seu tempo de escola, falha ao tentar fazer com que ele construa uma narrativa, ou seja, o rapaz só consegue, nesse momento, emitir sua opinião, mas não consegue desenvolvê-la, não consegue argumentar a favor do seu próprio pensamento.
Tanto em uma conversa desse tipo quanto numa dissertação-argumentativa no Enem ou em qualquer outro vestibular ou concurso, devemos escrever um texto no qual a argumentação tenha como objetivo convencer o leitor ou, pelo menos, fazê-lo pensar a respeito. Toda argumentação objetiva o convencimento, no fim das contas, até num bate papo casual. Assim, opinar não basta, é preciso argumentar.
A dificuldade do rapaz fica clara quando ele, infelizmente, não consegue responder a Serginho; ele para, pensa e repete que se trata de um “teminha complicado” e que ele é completamente contra às cotas para negros nas universidades. O apresentador pergunta se na universidade dele há cotas e ele responde que desconhece e que varia do curso, da aceitação de cada pessoa e que na sua universidade, como um todo, não há muitos alunos negros entre homens e mulheres nem também tem poucos, uma fala, no mínimo, confusa. A seguir, ele disse que poderia haver mais negros na sua universidade se lá existissem cotas, mas que, mesmo assim, ele é contra a esta política de ação afirmativa.
A conversa entre o rapaz e Seginho é encerrada e, em seguida, o vídeo exibe a fala de MV Bill, já que trata-se de um vídeo editado. Na versão que foi ao ar, na época, a fala do rapper se deu em um outro momento, após a pergunta de uma menina sobre o impacto social do documentário Falcão: Meninos do Tráfico (2006), produzido por ele. Ele fala um pouco sobre a discussão gerada pelo filme e pede para expressar sua opinião sobre as cotas para negros na universidade.
Segundo a fala de MV Bill neste vídeo, nem todos os brasileiros têm condições de ingressar em uma faculdade não pela questão da capacidade, mas porque a concorrência é desigual, já que o vestibular é a porta de entrada no ensino superior no Brasil, como o Enem, por exemplo.
A seguir, o rapper exemplifica a concorrência desleal dizendo que o jovem negro que mora nas periferias precisa, desde cedo, concilar estudo e trabalho e dá a sua vida como exemplo, dizendo que precisou fazer isso, que sua mãe ficava contente ao receber dele um dinheiro oriundo de um trabalho informal (olhar carro na rua, ajudar na feira, venda de jornais etc.) do que com botas notas em seu boletim. MV Bill explica que ela se comportava desta maneira devido ao seu histórico familiar, no qual nenhum parente cresceu na vida por conta do estudo.
Deste modo, ele embasou sua opinião em uma estratégia argumentativa por meio de um exemplo coletivo e de um exemplo pessoal, isto é, ele exemplificou uma realidade maior em sua infância e juventude. Ele não apenas opinou como também desenvolveu essa opinião, já que o seu trabalho resultava em ajuda na alimentação de toda a sua família.
Em seguida, o rapper contextualiza a questão na realidade social do jovem negro que, não por acaso, em sua maioria, também é pobre. Mas esse jovem quer ser visto, quer ser diferente, mas quando ele entra na escola, ele passa a ser invisível, de acordo com MV Bill. Ele usa mais um exemplo, agora, a própria plateia do programa Altas Horas, na qual há poucos jovens negros, ou seja, ela não representa a diversidade racial, étnica brasileira, o que acontece em todos os canais de televisão brasileiros.
Focando mais nas cotas raciais, MV Bill afirma que elas não são sua política preferida, que ele gostaria que fosse diferente, e que não basta enfiar os negros na universidade. O ideal seria que os negros tivesse a mesma oportunidade de se prepararem para ingressar na faculdade onde eles terão acesso ao conhecimento e que o caminho inverso leva o jovem para a marginalidade e para a submissão do trabalho braçal.
O rapper finaliza a sua fala dizendo que a educação, no Brasil, é item de luxo, pois ela não é igual para todos e que o mesmo ocorre com a questão da saúde, por exemplo, que só consegue um atendimento adequado quem consegue pagar um plano de saúde. Caso houvesse educação básica de qualidade, as cotas poderiam ser extintas.
Desta maneira, MV Bill não só expressa sua opinião como a desenvolve por meio de um raciocínio lógico embasado numa argumentação que, por sua vez, é pautada em estratégias argumentativas, algo que o rapaz não conseguir fazer.
Isto é, independentemente da opinião a respeito de qualquer tema, ela deve ser desenvolvida em uma linha argumentativa embasada em estratégias argumentativas como exemplos, retomadas históricas dentre outras.
Até a próxima semana!
*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada em Letras/Português e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas e do Curso Online do infoEnem. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).
**Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas!