O Inep (Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), instituição que, em parceria com o MEC (Ministério da Educação), realiza a elaboração e a aplicação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), mantém um perfil na rede social Instagram e algumas publicações têm chamado a atenção de participantes do exame que, por sua vez, estão pensando que pode haver ali uma dica do tema da proposta de redação do Enem 2018.
Essas publicações são baseadas em termos e expressões da Língua Portuguesa oriundas de vários estados do Brasil, os regionalismos, isto é, conjuntos de particularidades linguísticas (gírias, palavras, expressões etc.) de uma determinada região. As montagens das publicações usam regionalismos para falar, por exemplo, quantos inscritos no Enem 2018 há de determinado estado. Vejam alguns exemplos:
Há várias outras publicações mostrando alguma palavra ou expressão linguística típica de estados brasileiros, dando dicas sobre o Enem 2018 e informações acerca dos participantes dos referidos territórios.
Qualquer língua é viva. Língua e linguagem não são “coisas” estanques, imutáveis. Letras e Linguísticas são consideradas áreas das ciências humanas inclusive por conta disso.
Nós, falantes, somos quem mudamos as línguas com o passar do tempo, dependendo do uso que fazemos delas. Uma língua é considerada viva quando há falantes; quando não há mais falantes, é considerada uma língua morta, como aconteceu com muitas das 180 línguas indígenas que existiam no Brasil quando os portugueses aqui chegaram. Devido ao massacre dos povos nativos de nosso país, inclusive por meio do trabalho escravo, e ao não ensino e registro dessas línguas, elas foram morrendo conforme seus falantes iam falecendo, deixando de ensiná-las às crianças e aos jovens de muitas etnias indígenas. Algumas delas morreram neste ano, com o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, no qual pesquisadores de Língua Indígenas (campo de pesquisa da Linguística) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) faziam suas pesquisas e estudos.
Segundo Celso Cunha (1917 – 1989), um dos mais importantes gramáticos brasileiros, toda língua é composta por variedades e
Todas as variedades linguísticas são estruturadas, e correspondem a sistemas e subsistemas adequados às necessidades de seus usuários. Mas o fato de estar a língua fortemente ligada à estrutura social e aos sistemas de valores da sociedade conduz a uma avaliação distinta das características das suas diversas modalidades regionais, sociais e estilísticas. A língua padrão, por exemplo, embora seja uma entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a mais prestigiosa, porque atua como modelo, como norma, como ideal linguístico de uma comunidade. Do valor normativo decorre a sua função coercitiva sobre as outras variedades, com o que se torna uma ponderável força contrária à variação.
Celso Cunha. Nova gramática do português contemporâneo. Adaptado.
Variedades linguísticas, portanto, são, na prática, palavras, expressões, gírias etc. típicas de determinada região de um país, de um determinado povo, de pessoas de determinadas idades, profissões etc. E isso é natural em toda língua, não só na Língua Portuguesa.
Por exemplo, por questões culturais, sociais, educacionais, dentre outras, mulheres e homens falam de maneiras diferentes, geralmente, pois usam diferentes palavras. Pessoas de idades diferentes também falam diferente entre si; por exemplo, quem nunca usou uma gíria com o pai, a mãe ou os avós e estes estranharam porque não conheciam? Eu mesma aprendi com meus alunos e na internet o novo significado da palavra em inglês crush (paquera).
Quem nunca viajou para outra cidade ou outro estado e estranhou o nome de alguma coisa? Quando eu fui pela primeira vez ao nordeste, por exemplo, estranhei o uso da palavra macaxeira para falar de “mandioca”. Outro exemplo é a eterna briga, no bom sentido, entre Rio de Janeiro e São Paulo: balão x bexiga; bolacha x biscoito.
Pessoas de determinadas profissões usam jargões específicos de suas áreas de atuação. Numa audiência, por exemplo, podemos não compreender termos usados por juízes, advogados e promotores; ao lermos um prontuário médico, podemos não entender termos usados por médicos e enfermeiros e está tudo bem, pois é assim mesmo.
E como há regionalismo, há também os diferentes sotaques e todos são corretos. É uma falácia afirmar que o sotaque de São Paulo é o mais correto ou que uma determinada região não tem sotaque. Isso ocorre inclusive no Inglês: o Inglês falados na Inglaterra, na Irlanda e na Austrália, por exemplos, têm sotaques e usos de palavras diferentes; dentro dos EUA há sotaques e usos distintos.
No Brasil há o -r caipira típico do interior de São Paulo, o sotaque cantado do Rio Grande do Sul, o chiado do Rio de Janeiro (que surgiu quando os portugueses imitavam os franceses falando, por acharem mais “bonito”), o “jeitim” de falar dos mineiros e assim por diante.
Porém, como a língua é viva e muda de acordo com o uso de seus falantes, ela é também ligada a questões culturais, sociais e históricas e é por isso que as variedades linguísticas, muitas vezes, têm valorizações diferentes da valorização da chamada norma culta de uma língua que, no Brasil, está ligada a um “ideal” de língua previsto das normas e regras da gramática normativa do Português Brasileiro (sim, Português de Portugal é uma língua, Português do Brasil é outra).
Para os linguistas, a norma culta é apenas mais uma variedade linguística de uma língua, mas para muitas pessoas é a variedade de maior prestígio porque é a ensinada pela escola e é a que está contemplada nas gramáticas normativas.
E é neste pensamento equivocado que nasce o preconceito linguístico, isto é, quando alguém é descriminado por falar de acordo com a sua variedade linguística e não de acordo com a norma culta. E isso pode ser o foco do tema de uma proposta de redação que aborde variedades linguísticas: como combater o preconceito linguístico?
Vocês podem estar pensando: “Então posso falar de qualquer jeito que está tudo bem?” “Então para que servem as aulas de gramática na escola?”.
A escola tem dois papéis neste assunto: ensinar a norma culta, valorizando e respeitando as variedades e orientar os alunos quanto a adequação linguística que, nada mais é, do que saber em qual situação devemos usar a norma culta e quando podemos usar a nossa variedade, com gírias, por exemplo.
Um exemplo que sempre dou aos meus alunos é o seguinte: imaginem que, num sábado, vocês têm dois compromissos: um churrasco numa chácara na hora do almoço e um casamento (cerimônia e festa) à noite. Pergunta: é adequado irmos aos dos eventos com a mesma roupa? Resposta: não. As regras de etiqueta dizem que um casamento à noite é um evento social formal; já no churrasco podemos até ficar em trajes de banho se houver piscina.
Agora, imaginem que, num mesmo dia, vocês têm uma entrevista de emprego agendada para o final da tarde e um encontro com amigos numa lanchonete. Pergunta: podemos ir à lanchonete com a mesma roupa da entrevista? Resposta: pode parecer um pouco estranho, mas sim; os homens podem tirar a gravata e o paletó que usaram na entrevista, arregaçar as mangas da camisa e tudo bem; já as mulheres podem colocar um batom mais forte saindo da entrevista e tudo bem.
Agora, podemos falar com o entrevistador na entrevista de emprego do mesmo modo que falamos com nossos amigos numa lanchonete? Não, de maneira nenhuma. A entrevista de emprego é uma situação formal de comunicação na qual devemos usar a norma culta padrão da língua; já o encontro com os amigos é uma situação informal de comunicação na qual podemos usar nossa variedade linguística.
Ter essa noção de quando, em qual situação e com quem devemos usar a norma culta da língua e quando, em qual situação e com quem podemos usar a nossa variedade, gírias, por exemplo, é adequação linguística.
E aí, já pensou quais regionalismos fazem parte da sua variedade linguística? Eu sou de Sorocaba, interior de São Paulo, e aqui temos várias, como por exemplo:
“Tá chovendinho hoje“. (o uso do verbo está, deste jeito, é variedade informal)
“Vim andandinho até aqui”
“Levei um ergue hoje da minha chefe”
“Vô chegando” (estou indo embora)
“Castele aquilo!” (olhe aquilo!)
“Carcule só!” (veja só! – destaque para o -r caipira)
Até a próxima semana!
*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada em Letras/Português e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas e do Curso Online do infoEnem. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).
**Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas!