No dia 18 de outubro último, esta coluna publicou um texto que abordou as variedades linguísticas no Brasil como um provável e possível tema da prova de redação da edição de 2018 do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Não acertamos o palpite sobre a proposta de redação, mas esse assunto tem muito a ver com a questão de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias que abordou o pajubá e é sobre isso o texto de hoje.
Como escrevemos no referido texto, toda língua viva tem a sua norma culta e padrão, ensinada nas escolas e utilizada em ambientes formais, tanto na oralidade quanto na escrita, e as suas variedades ou variantes. As variedades linguísticas representam pessoas de determinadas regiões (cidades, estados, por exemplo), de determinadas idades e de determinados grupos. Este é um fenômeno totalmente natural em uma língua, já que se trata de algo vivo usado e alterado pelos seus usuários, isto é, pelos seus falantes. Ao longo do tempo, essas mudanças e alterações vão sendo incorporadas – assim como os empréstimos e os estrangeirismos, fenômenos linguísticos igualmente naturais – uma mais, outras menos, algumas chegando a compor dicionários, por exemplo.
Nesse contexto, segundo a Linguística, um dialeto é um conjunto de marcas linguísticas de natureza semântico-lexical (relacionado aos sentidos, à significação e ressignificação e ao léxico), morfossintática e fonético-morfológica (relacionados à sintaxe e a fonética, respectivamente), restrito de uma comunidade ou grupo inserido numa comunidade ou grupo maior de usuários de uma mesma língua. Resumindo, dialeto é uma variedade linguística que coexiste com outra.
No Brasil, por exemplo, há vários dialetos regionais, isto é, de determinadas regiões, inclusive com dicionários próprios publicados. É o caso, por exemplo, do dialeto “caipiracicabano”, da cidade de Piracicaba, no interior de São Paulo, cuja região é muito famosa pelo -r caipira; o dialeto cearense, do estado do Ceará, no nordeste brasileiro; o dialeto da Bahia, também no nordeste dentre outros. Quem já teve a oportunidade de viajar para outros estados além do seu ou de conversar com pessoas destas regiões que demos como exemplo podem ter provas, numa simples conversa, de que se trata de dialetos.
Nesse sentido, há também dialetos específicos de determinados grupos, como é o caso do pajubá. Segundo o professor Carlos Henrique Lucas Lima, da Universidade Federal do Oeste da Bahia, o pajubá (também chamado por alguns de bajubá) é um dialeto com um “repertório vocabular e performativo” de parte da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais).
De acordo com Lima, trata-se de um dialeto que tem origem no nagô e no iorubá (grupos étnico-linguísticos africanos) que foi apropriado por parte da comunidade LGBT. Esta apropriação pode ser explicada, também, pela prática do candomblé, religião de matriz africana, por parte da comunidade LGBT que fala o pajubá, já que tanto esta crença religiosa quanto os idiomas nagô e iorubá chegaram ao Brasil por meio dos escravos africanos. E, nesse sentido, não há como negar a influência africana em nossa cultura, seja nas variedades linguísticas, na música, nas religiões, na culinária, no esporte etc.
A questão que abordou o pajubá o usou apenas para contextualizar o participante do Enem 2018 em relação aos assuntos “variedades linguísticas” e “dialetos“. Não é um dialeto secreto, pois quem o usa o usa normalmente, com seus pares e nas situações que permitem esse uso (retomando a noção de adequação linguística mencionada no texto do dia 18 de outubro); tão pouco é um dialeto por ter mais de mil palavras, já que a definição de dialeto não considera número de palavras; não é utilizado em advogados em situações formais nem é comum em conversas no ambiente de trabalho, pois em ocasiões formais, como estas, deve-se usar a norma culta, padrão da língua.
O pajubá ganha status de dialeto porque foi consolidado por objetos formais de registro que, no caso da questão, é o dicionário mencionado no enunciado – Aurélia, a dicionária da língua afiada, de Angelo Vip e Fred Libi. Resumindo, a resposta correta é a letra C.
O mesmo processo ocorreu com os dialetos cearense e caipiracicabano mencionados anteriormente. Ambos têm status de dialeto porque foram consolidados em objetos formais de registro como o dicionário.
Para os linguistas, para os professores de Português, alunos e pesquisadores da área, essa questão não tem nada de polêmica; pelo contrário, foi considerada pela grande maioria como uma questão fácil e simples que exigia um conhecimento prévio acerca de variedades linguísticas e dialeto e interpretação de texto.
Poderia ser um enunciado que abordasse um dialeto regional, como o cearense e o caipiracicabano? Sim, poderia. Por que o Enem preferiu inserir na prova uma questão que aborda um dialeto usado por parte da comunidade LGBT? Talvez pelo perfil de aluno desejado: um aluno que, no mínimo, tolere a diversidade e compreenda que ela se dá inclusive na linguagem.
Nesse sentido, essa questão serviu para promover dois debates: a presença de questões que abordem variantes linguísticas e a presença de questões que abordem grupos minoritários como a comunidade LGBT e debater assuntos de suma importância atualmente, como respeito à diversidade sexual.
“Ah, mas ainda assim poderia ter sido abordado um outro dialeto.”. Tudo bem, mas qual? Dentre a nossa imensa variedade linguística, qual variante merece ser contemplada no Enem? A caipira ou quem mora em grandes centros urbanos iria criticar? A das pessoas que moram em comunidades carentes, nos morros cariocas, por exemplo, ou os moradores de bairros como o Leblon iriam reclamar? O dialeto cearense ou os habitantes do sudeste iriam se manifestar? O dialeto de praticantes da crença evangélica ou os católicos iriam se queixar? Ou, para todos os exemplos, o contrário?
O que queremos dizer é que se trata de uma questão complexa, inclusive teoricamente falando, pois aborda um grande campo da Linguística: a sociolinguística. Podemos debater a formulação das questões do Enem? Óbvio que sim, mas com argumentos consistentes e pautados na área da educação e da avaliação dentro das disciplinas e das suas respectivas áreas de pesquisa.
Costumamos dizer os nossos alunos que o Enem e todos os outros vestibulares é só uma prova e que a nota obtida não define quem eles são porque eles são muito mais do que uma nota em um exame, até porque esse sistema não é justo, ainda mais em se tratando de Brasil.
Nesse sentido, em meio a essa “polêmica”, reafirmamos que o Enem é só uma prova e suas questões não incentivam ou estimulam os participantes a serem o que eles não são ou a mudarem seus pensamentos e sentimentos. Nenhum exame tem esse poder.
Para finalizar, a renomada psicóloga Rosely Sayão, especialista em educação, defende que entre família e escola deve haver sim, em certa medida, um certo conflito (no bom sentido) para que crianças e jovens tenham duas perspectivas diferentes e esteja pronto para formar a sua própria perspectiva. Em entrevista à Carta Educação, em junho de 2016, ela afirmou:
CE: A senhora também defende que a relação entre família e escola deva ser, em certa medida, conflitante para que a criança tenha duas perspectivas de mundo. Como assim?
RS: Uma é a perspectiva de mundo segundo a família, que é uma perspectiva privada, recheada muitas vezes de preconceitos, pré-julgamentos, convicções. E a escola deveria oferecer para o alunado a visão de mundo na perspectiva do conhecimento. Assim, o aluno pode olhar para aquilo que ele aprendeu com os pais e pensar criticamente a conflitorespeito. Se não o mundo nunca muda, os filhos vão repetir os pais e pronto. Então quando eu vejo famílias procurando escolas que falam a mesma linguagem que eles, eu ficou um pouco assustada porque é colocar a criança sob a ditadura de um pensamento único.
Até a próxima semana!
Referências Bibliográficas:
Rosely Sayão: “Educar é apresentar a vida e não dizer como viver” In. http://www.cartaeducacao.com.br/entrevistas/rosely-sayao-educar-e-apresentar-a-vida-e-nao-dizer-como-viver/.
O que é o pa
bá, a linguagem criada pela comunidade LGBT In https://super.abril.com.br/cultura/o-que-e-o-pajuba-a-linguagem-criada-pela-comunidade-lgbt/.
*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada em Letras/Português e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas e do Curso Online do infoEnem. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).
em>**Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas!
1 comment
“pajubá” Muito Bom! rs
Amei o artigo!
Abração