Análise e Comentários da Proposta de Redação do Enem 2016

Nos últimos dias 5 e 6 de novembro foi aplicada a primeira edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2016; primeira edição porque o Ministério da Educação (MEC) cancelou a aplicação do exame nas escolas ocupadas por estudantes contra a reforma do Ensino Médio e a PEC 241 em todo o país e, por este motivo, haverá uma segunda edição do Enem nos dias 3 e 4 de dezembro, além da edição PPL (Pessoas Privadas de Liberdade) em meados do próximo mês, como ocorre todos os anos.

O tema da redação da primeira edição do Enem 2016 foi “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil” e foi uma grande surpresa para a maioria dos candidatos. No ano de 2015, esta coluna publicou um texto sobre esta questão como possível tema para a prova de redação do Enem 2015 e no Curso de Redação do nosso portal há duas propostas que tratam deste tema: uma sobre a intolerância religiosa propriamente dita e outra sobre Estado laico.

Além disso, há polêmicas envolvendo o tema da redação do Enem 2016, já que o MEC, em 2015, publicou uma foto da proposta com uma tarja escrito “falso” (imagem), afirmando que aquela não era a prova de redação do exame do ano passado e isso foi percebido por algumas pessoas que compartilharam a foto nas redes sociais. O MEC emitiu uma nota respondendo que não se trata da mesma prova, porém elas são muito parecidas.

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Outra polêmica foi o pedido de anulação da prova de redação pelo Ministério Público Federal do estado do Ceará devido ao suposto vazamento do tema para candidatos que pagaram para fraudar o exame. Tal solicitação, no entanto, foi negada em caráter liminar na noite de ontem (veja).

Apesar desses problemas, pensamos que a proposta de redação não deve ser desmerecida, pois trata-se de uma questão social e política de fundamental relevância e importância na sociedade brasileira que, obviamente, não vive conflitos de cunho religioso como no Oriente Médio, mas presencia sim casos de intolerância religiosa nas ruas, na mídia e na internet, principalmente nas redes sociais.

Passando para a análise, a coletânea de textos motivadores é composta por quatro textos, sendo um deles um infográfico. Como sempre, a multimodalidade está presente nas propostas de redação do Enem e, com este tema, a multiculturalidade também.

O primeiro texto motivador é do site do Ministério Público do Rio de Janeiro e traz a questão da laicidade do Estado brasileiro, isto é, o Brasil é um país laico, ou seja, não tem uma religião oficial e por isso assegura, em sua Constituição, a liberdade religiosa e a proteção a todas as manifestações religiosas, afastando a interferência de correntes religiosas em matérias sociais, políticas e culturais.

Em relação a este primeiro texto, o candidato deveria refletir sobre a laicidade do Estado brasileiro: ela existe e é assegurada, de fato, na prática? As bancadas religiosas em todos os âmbitos do poder Legislativo não interferem em matérias sociais, políticas e culturais brasileiras? Infelizmente, a resposta é negativa para ambas as perguntas, já que existem no país partidos políticos ligados à igrejas e que advogam a favor de seus interesses, criando, por exemplo, o Estatuto da Família, coibindo ações contra a tipificação da homofobia como crime pelo Código Penal brasileiro, barrando a discussão sobre a legalização do aborto dentre outras questões.

Não é errado haver representantes de um grupo na política, mas estes representantes não podem advogar apenas em causa própria em um Estado que se diz laico. Crenças religiosas não devem pautar decisões políticas que dizem respeito a todos, inclusive aos ateus, por exemplo. Como numa dissertação-argumentativa, política não é lugar de subjetividade e sim de objetividade e o candidato que confundiu isso, nesta proposta, não atendeu ao tema.

Já o segundo texto motivador difere liberdade de expressão ao criticar dogmas religiosos de ofensas e agressões a religiões ou ainda a quem não tem nenhuma crença, sendo estas crimes que não prescrevem e que são inafiançáveis. Em relação a este texto, o candidato poderia argumentar a favor da tipificação da intolerância religiosa como um crime de ódio, já que todas as crenças devem ser respeitadas, assim como as pessoas que não tem nenhuma.

Aliás, trabalhar com as diferenças entre os verbos ‘tolerar’ e ‘respeitar’ poderia ser uma ótima alternativa, já que o primeiro significa ‘aguentar, suportar’ e o segundo ‘considerar, reconhecer’. Todas as religiões devem ser respeitadas: o Cristianismo, o Judaísmo, o Islamismo, o Budismo, o Espiritismo, as religiões de matriz africana como o Candomblé, a Umbanda e a Quimbanda, o Hinduísmo, o Messianismo, dentre outras e todas as suas variações, pois um cristão pode ser católico ou evangélico, por exemplo, ortodoxo ou protestante, ou neopentecostal etc. Além disso, os ateus e agnósticos também devem ser respeitados e todos devem respeitar uns aos outros.

O terceiro texto motivador, por sua vez, é o artigo do Código Penal que trata dos crimes contra o chamado “sentimento religioso” que se configura na prática de escarnecer, publicamente, a crença ou o rito religioso de alguém ou de algum grupo e o quarto texto motivador, finalmente, apresenta dados retirados da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal.

Segundo o infográfico, as religiões de matriz africana são os maiores alvos da intolerância religiosa no Brasil, seguida pelas religiões evangélicas e pelo Espiritismo. Em relação às religiões de matriz africana, é possível estabelecer uma conexão entre intolerância religiosa e racismo, já que religião é uma das expressões da cultura de um povo e estas crenças chegaram ao Brasil pelos escravos africanos trazidos pelo tráfico negreiro para a então colônia portuguesa. Quando há racismo, há ódio pela cultura de todo um povo.

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O mesmo infográfico traz dados sobre as denúncias e várias delas chegam à agressão física, como no caso da menina que foi apedrejada no Rio de Janeiro ao sair do seu terreiro de Candomblé com a sua avó, ou como no caso do tio de uma adolescente evangélica que sofreu agressões físicas de colegas de escola da sobrinha.

Estes são apenas dois exemplos de que existe intolerância religiosa no Brasil. Relativizá-la, afirmar que há um exagero é tangenciar o tema; negá-la é fugir totalmente do tema. O tangenciamento se dará também, provavelmente, por uma abordagem da intolerância de maneira geral ou ainda ao abordar outro tipo de intolerância ou, uma outra possibilidade, ao abordar a questão em âmbito mundial e não nacional.

Já a fuga do tema se dará, provavelmente, ao negar a existência da intolerância religiosa no Brasil e ao afirmar que intolerância religiosa é só o que ocorre no Oriente Médio, por exemplo.

A proposta de intervenção social, para não desrespeitar os direitos humanos, não deve sugerir dar o troco na mesma moeda, agredindo os intolerantes, mas sim punindo-os de uma maneira muito mais severa, enquadrando-os, por exemplo, em crimes de ódio. Campanhas ecumênicas, com representantes das mais diversas religiões, na mídia, nas escolas e nas própria igrejas poderia ser também uma proposta de solução, de maneira detalhada e prática.

Parabenizamos o Enem por tratar, mais uma vez e pelo segundo ano seguido, de uma questão tão urgente para a sociedade brasileira.

 


*CAMILA DALLA POZZA PEREIRA é graduada em Letras/Português e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente trabalha na área da Educação exercendo funções relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Foi corretora de redação em importantes universidades públicas. Além disso, também participou de avaliações e produções de vários materiais didáticos, inclusive prestando serviço ao Ministério da Educação (MEC).

 
**Camila é colunista semanal sobre redação do nosso portal. Seus textos são publicados todas as quintas!

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5 comments
  1. Primeiramente quero falar sobre comentários do primeiro texto, se é função do Estado cuidar do sociedade, é função das religiões cuidar da conduta do homem, porém a política interfere na vida e nos comportamentos dos indivíduos como é cosa do aborto , homfobia. Portanto se é política intervi na conduta humana que fasa a junto com religião.
    Devo lembrar que povo não separa da religião e sendo uma democracia então a politica também não pode separa-se da mesma.
    E tocante ao demais, É precioso levar em consideração que o participante não dispõe de muito tempo para um análise tão detalhada e profunda o que se pode faz é tentar analisar tudo de uma só vez e sintetiza à ideia principal acreditar esta se ser MMC entre eles, e trabalha em cima dessa ideia principal. Fui que eu fez espero ter dirado uma boa nota.

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